O Antigo Testamento é um Livro Helenístico?

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N. P. Lemche

O Antigo Testamento é um Livro Helenístico?

Neste ensaio, Lemche explora a possibilidade do Antigo Testamento ser um livro helenístico. Fruto dos desenvolvimentos da arqueologia de campo, o autor assinala como se volatilizou a ideia dos «israelitas» terem chegado do estrangeiro. Descendem antes dos canaanitas, a antiga população da Palestina. Quanto aos esplendorosos e bíblicos reinos de David e Salomão, não apareceu evidência da sua existência, tratando-se provavelmente de tardias criações literárias, do período do exílio babilónico (séc. VI a.C.). A sociedade «israelita» só viria a desenvolver as características do «Israel» do Antigo Testamento num período muito tardio. Também a ideia bíblica do que seria a religião «israelita» tem muito pouco a ver com a realidade do período de 1000 a 500 a.C. Os traços da invenção de uma ancestralidade são muito evidentes. O relato da conquista no Livro de Josué, as narrativas patriarcais, a história sobre os israelitas no Egito e a sua fuga, são criações da diáspora. Idealizam o (re)estabelecimento na Palestina de um grande reino judaico, sem fundamento num anterior império israelita.

Nesta «história de Israel» o autor vê uma matriz grega que contempla múltiplas similaridades com as histórias de Heródoto. É patente os escritores-historiadores bíblicos estarem familiarizados com a tradição grega, familiaridade que terão adquirido ou aprofundado no período helenístico, com o desenvolvimento económico e cultural que se verificou.

Com base em considerações históricas e literárias, o autor debruça-se sobre o Livro de Samuel. A tradição bíblica e académica aponta para o ano 1000 a.C., mas a sua existência só é inequivocamente atestada em c.350 d.C., data do mais antigo Antigo Testamento, a tradução grega conhecida como Septuaginta, o Codex Vaticanus. Portanto, a primeira e mais sólida certeza é a de que o Livro de Samuel existe em 350 d.C.; considerando a existência de fragmentos entre os Manuscritos do Mar Morto, o autor recua até ao séc. I a.C.; considerando que a Septuaginta é um produto da cultura helenística, recua até ao período helenístico. Mais linear é o Génesis, onde o autor destaca os aspectos claramente devedores de Tales de Mileto, pelo que a datação deve ser posterior ao séc. VI a.C. Por outro lado, existindo fragmentos entre os Manuscritos do Mar Morto, é possível estabelecer uma data anterior ao séc. I a.C.

Segundo o autor, o Antigo Testamento é evidência de que o período helenístico foi o momento formativo da literatura judaica. Intuição que virá informar posteriores estudos de Lemche e de outros autores, como Wajdenbaum e Gmirkin. A esta hipótese Lemche regressará 25 anos mais tarde em O Antigo Testamento é ainda um Livro Helenístico?

Niels Peter Lemche

N. P. LEMCHE (n.1945) é Professor Emérito da Universidade de Copenhaga, onde lecionou Old Testament Studies. Co-fundou e é editor do Scandinavian Journal of the Old Testament. É autor de duas dezenas de livros, entre os quais se destacam The Israelites in History and Tradition (1998) e The Old Testament Between Theology and History (2008), e ainda centenas de ensaios e capítulos de livros.

Face ao «colapso da história», i.e. da historicização da Bíblia, Lemche tem vindo a privilegiar uma abordagem histórico-crítica mobilizando ampla panóplia de métodos e disciplinas – arqueologia, antropologia, sociologia, linguística, crítica literária… – assim lançando uma nova luz sobre a realidade do Levante antigo, com notável alcance para a compreensão da história da região e da natureza do Antigo Testamento. Lemche integra a «Escola de Copenhaga», designação que congrega académicos desta universidade (ele, T. L. Thompson, entre outros) e ainda de Sheffield (como P. R. Davies e K. W. Whitelam), cujas posições foram qualificadas de «minimalistas». Apesar da diversidade de percursos de investigação, interesses e estilos, estes autores privilegiam a leitura histórica com base nos registos arqueológico e epigráfico não subordinada a construções mítico-religiosas, através de forçadas e retóricas conciliações. Desta démarche resulta uma história da região muito diversa da narrativa bíblica e das histórias que parafraseiam a mesma. Alicerçada em robusta análise linguística e literária, a perspectiva adotada põe em evidência como o período persa e helenístico constituem a «matriz mental» na base da formação do Antigo Testamento. Liberto o Antigo Testamento do fardo historicista, readquirem relevo a dimensão propriamente religioso-poética da palavra e a perspectiva teológica. Com efeito, a nossa concepção contemporânea de história é incomensurável com a história bíblica; a história bíblica não concerne a formação e transformação de impérios, reinados, povos, culturas e paisagens; a história bíblica é o quadro em que se ocorre a revelação divina; o seu sentido é religioso-poético. Em The Old Testament Between Theology and History, magistralmente, o autor percorre as posições de diversas escolas teológicas ao longo da história até aos nossos dias e a fundo explora os pontos de encontro e de bifurcações com a história.