O Antigo Testamento ainda é um Livro Helenístico?

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N. P. Lemche

O Antigo Testamento ainda é um Livro Helenístico?

Vinte cinco anos após O Antigo Testamento é um Livro Helenístico?, Lemche pergunta-se se ainda o é. Um quarto de século de investigação histórica e arqueológica confirmaram as hipóteses fundamentais da sua conferência-ensaio de 1991, relativamente ao surgimento do povo israelita, da sua religião, do monoteísmo ou, com efeito, dos demais povos que se cruzaram e desenvolveram no Médio Oriente, com as suas próprias religiões e mesmo monoteísmos.

Se a Bíblia Hebraica não é, estritamente falando, um livro helenístico, já que surgiu nos tempos romanos como um conjunto de escritos rabínicos provenientes do mundo judaico, o Antigo Testamento grego, a Septuaginta, é-o indubitavelmente. Desde logo pelo idioma, o grego. Mas a literatura bíblica é ainda amplamente devedora da historiografia grega, de Heródoto, bem como de um Tito Lívio. É ainda possível detetar traços do Hesíodo, de Beroso e de Ovídio. No Génesis são discerníveis traços de Tales de Mileto (ou seus discípulos). O autor desenvolve e densifica a argumentação, salientando como tudo isto não é incompatível com referências ugaríticas, com motivos mesopotâmicos e épicos babilónicos, tal como a narrativa do dilúvio como reescrita de Gilgamesh.

Se nos 25 anos que transcorreram entre o primeiro e o presente ensaio cresceu a tendência para situar a origem da literatura bíblica no período de Alexandre o Grande, Lemche alerta em relação a concepções simplistas destes processos de cruzamento civilizacional, salientando que há mais para além dos gregos. O impacto do mundo clássico sobre o Oriente foi profundo, mas misturou-se com as tradições locais: na arte e na arquitetura como também na literatura.

Apesar de não sabermos ao certo onde ocorreu a atividade literária que emana do Antigo Testamento, reconhece-se que não pode ter sido na pobre Palestina do período persa, ou na paupérrima Jerusalém da Idade do Ferro. Deverá, por isso, afastar-se Jerusalém como eixo de encontro das tradições que estão na base da literatura bíblica já que no período relevante era pouco mais do que uma grande aldeia. É bem mais provável que o Antigo Testamento possa ter sido composto em Alexandria, cidade grega com uma importante comunidade judaica, lugar de convergência e de irradiação do mundo antigo, onde se encontram muitas fontes e documentos.

Niels Peter Lemche

N. P. LEMCHE (n.1945) é Professor Emérito da Universidade de Copenhaga, onde lecionou Old Testament Studies. Co-fundou e é editor do Scandinavian Journal of the Old Testament. É autor de duas dezenas de livros, entre os quais se destacam The Israelites in History and Tradition (1998) e The Old Testament Between Theology and History (2008), e ainda centenas de ensaios e capítulos de livros.

Face ao «colapso da história», i.e. da historicização da Bíblia, Lemche tem vindo a privilegiar uma abordagem histórico-crítica mobilizando ampla panóplia de métodos e disciplinas – arqueologia, antropologia, sociologia, linguística, crítica literária… – assim lançando uma nova luz sobre a realidade do Levante antigo, com notável alcance para a compreensão da história da região e da natureza do Antigo Testamento. Lemche integra a «Escola de Copenhaga», designação que congrega académicos desta universidade (ele, T. L. Thompson, entre outros) e ainda de Sheffield (como P. R. Davies e K. W. Whitelam), cujas posições foram qualificadas de «minimalistas». Apesar da diversidade de percursos de investigação, interesses e estilos, estes autores privilegiam a leitura histórica com base nos registos arqueológico e epigráfico não subordinada a construções mítico-religiosas, através de forçadas e retóricas conciliações. Desta démarche resulta uma história da região muito diversa da narrativa bíblica e das histórias que parafraseiam a mesma. Alicerçada em robusta análise linguística e literária, a perspectiva adotada põe em evidência como o período persa e helenístico constituem a «matriz mental» na base da formação do Antigo Testamento. Liberto o Antigo Testamento do fardo historicista, readquirem relevo a dimensão propriamente religioso-poética da palavra e a perspectiva teológica. Com efeito, a nossa concepção contemporânea de história é incomensurável com a história bíblica; a história bíblica não concerne a formação e transformação de impérios, reinados, povos, culturas e paisagens; a história bíblica é o quadro em que se ocorre a revelação divina; o seu sentido é religioso-poético. Em The Old Testament Between Theology and History, magistralmente, o autor percorre as posições de diversas escolas teológicas ao longo da história até aos nossos dias e a fundo explora os pontos de encontro e de bifurcações com a história.