S. Sand
Como Deixei de Ser Judeu
Em perspetiva israelense
«Suportando a custo que as leis israelenses me imponham a pertença a uma etnia fictícia, acatando ainda com maior dificuldade pertencer, perante o resto do mundo, como membro de um clube de eleitos, desejo demitir-me e deixar de me considerar como judeu.
Embora o Estado de Israel não esteja disposto a alterar a minha classificação de “judeu” para “israelense”, atrevo-me a esperar que gentios filojudeus, sionistas empenhados e judeófobos exaltados, sustentados, amiúde, por concepções essencialistas, respeitarão a minha vontade e deixarão de me catalogar como judeu. Na verdade, pouco me importa o que eles pensam, e menos ainda o que pensa o remanescente de idiotas judeófobos. À luz das histórias trágicas do século XX, decidi nunca mais ficar sozinho num clube de prestígio reservado ao qual outros homens não têm a possibilidade nem a vocação de se juntar».
«Ser judeu no Estado de Israel, no início do século XXI, não corresponderá àquilo que era a situação do branco no sul dos Estados Unidos dos anos 1950 ou à dos franceses na Argélia antes de 1962? Não se assemelhará o estatuto de judeu em Israel ao do Afrikaner na África do Sul, antes de 1994?»
Na primeira metade do século XX, a maioria dos judeus, ortodoxos, liberais reformistas, bundistas sociais-democratas, socialistas e anarquistas, não vislumbravam a Palestina como a sua terra, pelo que não consideraram para aí encaminhar-se. Os terríveis golpes que se abateram sobre os judeus e o encerramento das fronteiras do «mundo esclarecido», mudaram este estado de espírito, impulsionaram a colonização judaica da Palestina e a criação do Estado de Israel.
«Pela minha recusa de ser judeu represento uma espécie em vias de extinção. Ao insistir no facto de que só o meu passado histórico foi judeu, que o meu presente quotidiano é israelense, para o melhor e para o pior, e que, por fim, o meu futuro ou o dos meus filhos, tal como em todo o caso assim desejo, será guiado por princípios universais, abertos e generosos […].
Tenho consciência de viver numa das sociedades mais racistas do mundo ocidental. O racismo é decerto omnipresente, mas em Israel depara-se com ele no espírito das leis, ensina-se nas escolas, é difundido nos meios de comunicação. Sobretudo, e isto é o mais terrível, os racistas não sabem que o são e, assim, não se sentem de forma alguma obrigados a desculpar-se. Por conseguinte, Israel tornou-se uma referência particularmente apreciada por uma maioria de movimentos de extrema-direita no mundo, outrora notoriamente antissemitas.
Viver em semelhante sociedade tornou-se-me insuportável, mas, confesso, não me é menos difícil habitar noutros lugares. Faço parte do produto cultural, linguístico e até mental do projeto sionista e não posso de tal desfazer-me. Pela minha vida quotidiana e pela minha cultura de base, sou um israelense. Não sinto orgulho nisto, como também não sinto em ser um homem de olhos castanhos e de porte médio. Tenho até, muitas vezes, vergonha de Israel, sobretudo quando contemplo a cruel colonização militar de que são vítimas os fracos, sem defesa, que não fazem parte do “povo eleito”».
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S. SAND (n.1946) é historiador e Professor Emérito da Universidade de Telavive, onde lecionou História Contemporânea. Filho de pais polacos, de cultura iídiche e sobreviventes do Holocausto, passou os dois primeiros anos de vida num «campo para pessoas deslocadas» antes da família emigrar para Israel, onde efetuou o serviço militar obrigatório e combateu na Guerra dos Seis Dias (1967). Doutorou-se em 1982 pela École des hautes études en sciences sociales, em Paris. A sua investigação tem incidido sobre a história cultural moderna, o movimento sionista e a construção de Israel. Com tradução em mais de 30 países, Como o Povo Judeu foi Inventado (2008), Como a «Terra de Israel» foi Inventada (KKYM+P.OR.K, 2021) e Como Deixei de Ser Judeu (KKYM+P.OR.K, 2023) propiciam-lhe projeção mundial. Entretanto publicou Como uma Raça foi Inventada (KKYM+P.OR.K, 2022), descrevendo o processo de racialização dos judeus, decorrendo entre a Europa judeófoba e o Israel nacionalista, denunciando em ambos os casos a fobia em relação ao «outro», que já foi judeu e com inquietante frequência tende agora a ser árabe. É ainda autor de Le XXe siècle à l’écran (2004), dedicado ao cinema.
Shlomo Sand encara Israel como fait accompli, mas reclama a transformação do Estado judaico num Estado de todos os seus cidadãos, independentemente das etnias ou religiões.