A História como Argumento para Posse de Terra

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N. P. Lemche

A História como Argumento para Posse de Terra

À semelhança do que aconteceu com os Estados-nação que se formaram no Ocidente, também a criação do Estado de Israel foi acompanhada pela construção de uma história nacional. Neste ensaio o autor identifica algumas ideias desta história: como «os judeus foram os primeiros ocupantes da Palestina», aqueles que «introduziram no país a civilização» e criaram na Palestina antiga «um Estado», um país que «só sob domínio ou governo judaico»; a ideia de que, mesmo em diáspora, «os judeus mantiveram uma relação contínua com a terra mãe que se prolongou por sucessivas gerações, orando pela sua redenção e preservando a memória do seu mapa e das suas características geográficas». A afirmação de que «o país remonta aos tempos bíblicos» é sintomática do amplo recurso que o moderno Israel faz do Antigo Testamento como fonte da sua legitimação. Esta história ensina-se nos bancos da escola, conformando uma memória nacional, factor de união de um povo e exclusão dos que lhe são estranhos, sobre o qual se alicerça a reivindicação do solo e se desqualificam as reivindicações de outros. Porém, esta «estória» nada tem a ver com os requisitos da historiografia contemporânea.

O autor começa por apontar contradições insanáveis, erros factuais e de apreciação. Não é compatível afirmar que o povo israelita conquistou a terra e que a ela sempre pertenceu; não se pode afirmar que os judeus trouxeram a civilização à Palestina quando uma invenção civilizacional maior como a invenção do alfabeto foi protagonizada pelos autóctones do sul do Levante; não se pode falar de domínio de milhares de anos sobre o território, quando o domínio «israelita» não durou mais de 200 anos, o do separado reino de Judá mais 135 anos, a que acrescem menos de 90 anos até ao domínio judaico da Palestina.

Lemche procede à crítica da historicização do Antigo Testamento e a uma crítica dos usos da «estória» bíblica apresentada como «história», com a qual circunscreve a própria história da antiga Palestina a breves séculos de independência israelita, fazendo uso de um texto da Antiguidade, legitimar a colonização da Palestina do Mandato Britânico por pessoas das mais diversas origens.

Um dos problemas fundamentais do uso do Antigo Testamento, como base para a história da Palestina e para legitimar o moderno Estado de Israel, é que a maior parte do que aí se relata nunca aconteceu. Nem houve exílio no Egito, nem conquista de Canaã, como também não houve exílio após a destruição do Segundo Templo, no séc. I d.C. As revelações da arqueologia, que nos seus começos se quis «bíblica», e dos estudos bíblicos propriamente críticos apontam em direções muito diferente da «estória» bíblica, a qual, sendo tributária da cultura grega, se constitui como um meio para a catequização de futuras gerações.

Niels Peter Lemche

N. P. LEMCHE (n.1945) é Professor Emérito da Universidade de Copenhaga, onde lecionou Old Testament Studies. Co-fundou e é editor do Scandinavian Journal of the Old Testament. É autor de duas dezenas de livros, entre os quais se destacam The Israelites in History and Tradition (1998) e The Old Testament Between Theology and History (2008), e ainda centenas de ensaios e capítulos de livros.

Face ao «colapso da história», i.e. da historicização da Bíblia, Lemche tem vindo a privilegiar uma abordagem histórico-crítica mobilizando ampla panóplia de métodos e disciplinas – arqueologia, antropologia, sociologia, linguística, crítica literária… – assim lançando uma nova luz sobre a realidade do Levante antigo, com notável alcance para a compreensão da história da região e da natureza do Antigo Testamento. Lemche integra a «Escola de Copenhaga», designação que congrega académicos desta universidade (ele, T. L. Thompson, entre outros) e ainda de Sheffield (como P. R. Davies e K. W. Whitelam), cujas posições foram qualificadas de «minimalistas». Apesar da diversidade de percursos de investigação, interesses e estilos, estes autores privilegiam a leitura histórica com base nos registos arqueológico e epigráfico não subordinada a construções mítico-religiosas, através de forçadas e retóricas conciliações. Desta démarche resulta uma história da região muito diversa da narrativa bíblica e das histórias que parafraseiam a mesma. Alicerçada em robusta análise linguística e literária, a perspectiva adotada põe em evidência como o período persa e helenístico constituem a «matriz mental» na base da formação do Antigo Testamento. Liberto o Antigo Testamento do fardo historicista, readquirem relevo a dimensão propriamente religioso-poética da palavra e a perspectiva teológica. Com efeito, a nossa concepção contemporânea de história é incomensurável com a história bíblica; a história bíblica não concerne a formação e transformação de impérios, reinados, povos, culturas e paisagens; a história bíblica é o quadro em que se ocorre a revelação divina; o seu sentido é religioso-poético. Em The Old Testament Between Theology and History, magistralmente, o autor percorre as posições de diversas escolas teológicas ao longo da história até aos nossos dias e a fundo explora os pontos de encontro e de bifurcações com a história.