MARC LENOT, “COLECTIVA, ACTO DE ESTADO. O REGIME ISRAELITA DE OCUPAÇÃO, UM ARQUIVO FOTOGRÁFICO (1967-2007)”, recensão, in www.artecapital.net, dezembro de 2021.
O Arquivo Municipal de Lisboa apresenta uma exposição/instalação (até 8 de janeiro) da filósofa e historiadora Ariella Aïsha Azoulay, que se define como uma palestiniana judía e não como uma israelita, e que actualmente vive e ensina nos Estados Unidos, mostrando pouco mais de 700 fotografias, tiradas entre 1967 e 2005, sobre a ocupação israelita da Palestina. O conjunto é intitulado Acto de Estado, a ação do estado, com o subtítulo "O Regime Israelita de Ocupação, um Arquivo Fotográfico (1967-2007)"; as fotografias e o seu texto, cada uma precariamente fixada por quatro pinos, são dispostas num friso em três filas ao longo das paredes da sala, ano por ano. Os anos mais representados são 1967 com 78 fotos, depois 1988, 1969, 1968 e 1987, estes cinco anos representando dois terços do total. As fotografias foram tiradas por pouco mais de 70 fotógrafos, individuais ou membros de coletivos de fotógrafos como Active Stills e Israel Sun, ou ONGs, como a organização de direitos humanos B'Tselem (que, desde então, confiou aparelhosde fotografia ou vídeo aos palestinianos para que eles pudessem documentar a ocupação), ou a organização de militares resistentes Breaking The Silence (que permanecem anónimos). Com raras exceções, todos os fotógrafos residiam em Israel e na Palestina, e não são "grandes repórteres" de passagem antes de partirem para outro lugar; 80% são judeus israelitas, sendo os outros palestinianos, com raros estrangeiros estabelecidos no país (como a francesa Anne Paq da Active Stills). Entre eles, poucos nomes conhecidos fora da região: Miki Kratsman, Anat Saragusti, Rina Castelnuovo, o artista Aïm Deelle Laski (com a imagem de uma transferência de mercadorias entre Israel e a Palestina, tirada com uma câmara obscura "pita" com múltiplas aberturas, em fotografia horizontal). Ariella Aïsha Azoulay montou esta coleção, anotou-a e comentou-a, e deu-a ao Gabinete de Fotografia do Centro Pompidou para que ficasse acessível aos investigadores (mas o Pompidou não a mostrou até agora). O catálogo só existe em hebraico e italiano. Não se pode simplesmente falar de fotografia documental, porque cada imagem é posta em perspetiva por um comentário de Azoulay que não só descreve a situação, como também destaca os mecanismos de poder por trás da imagem.
Com efeito, nestes textos, como nos seus livros posteriores, Ariella Aïsha Azoulay analisa a fotografia como um meio de resistência, um espaço em que os participantes (fotógrafos, fotografados e espectadores) não se deixam reduzir aos papéis a que o poder do regime imperialista gostaria de os constranger, e recusam-se a ser segregados entre cidadãos e não cidadãos. Ao mostrar como, através destas imagens, os Palestinianos podem exigir reparação pelos crimes cometidos contra eles, a fotografia permite identificar e rejeitar os mecanismos de justificação do regime: em vez do "mestre fotógrafo" ocidental, ao estilo Magnum (ver Robert Capa), que seria o autor e proprietário do evento fotografado, em detrimento das vítimas passivas, estas fotografias, entendidas como locais de interação entre fotógrafos, fotografados e espectadores, quer sejam tomadas por judeus israelitas ou palestinianos, mostram o papel ativo dos palestinianos. Como Azoulay diz, este corpus não é um arquivo do sofrimento dos palestinianos, mas um arquivo do desastre causado pelo regime que desapropria os palestinianos dos seus bens e tenta desapropriar-lhes da sua história. O objetivo deste arquivo é rejeitar as categorias impostas pelo regime imperial ("terrorista", "motim", "detenção administrativa", "posto de controlo", "não-cidadão") e torná-las inoperantes; estabelece um quadro para estudar a catástrofe causada pelo regime imperial, não como um facto consumado, mas como uma situação evitável e reversível.
Em vez de detalhar as violências, os prisioneiros, os feridos, os mortos, as humilhações, as destruições, as expulsões ao longo destas imagens, eu gostaria de mostrar apenas um aspeto, aquele do retrato voluntário, como, precisamente, uma interação entre os atores da fotografia. Se o homem torturado pelo Shabak (foto B'tselem, 1998) tem um rosto dissimulado, se alguns escondem os seus rostos por prudência (Kratsman, Belém, 1993), outros optam por se mostrar com os rostos descobertos, como Zakaria Zubeidi, um dos líderes da resistência em Jenin, cujos traços os serviços israelitas ignoram e que, por orgulho, pede ao fotógrafo Miki Kratsman para tirar uma fotografia dele, um gesto talvez imprudente, mas digno e orgulhoso (Kratsman vai exibir outro retrato de Zubaidi de pé à entrada da sua exposição no Museu de Israel). Outra interação em pé de igualdade entre fotógrafo e fotografado para testemunhar em detrimento do pudor, Daoud Atyia, 19 anos, fotografado quase nu por Micha Kirschner em 1984, inválido em resultado de ferimentos infligidos pela polícia fronteiriça israelita, que o impedem de permanecer de pé; e também a jovem, fotografada por Anat Saragusti, em 1983, que levanta a sua blusa e abre as calças para mostrar a cicatriz do seu ferimento de bala, um gesto impúdico mas orgulhoso, assumido pela fotografada que simplesmente quer testemunhar, sem ódio, sem reivindicação.
Já mencionei a Sra. Abu Zaheir (ou Zohrir), que quer que as lesões nas pernas sejam fotografadas, mas que não se quer despir em frente ao fotógrafo, Miki Kratsman, um homem, judeu ainda por cima: ela negoceia o enquadramento, negando ao fotógrafo um papel dominante, mas aceitando que a fotografia (regulada por Kratsman, desencadeada pelo intérprete, uma mulher árabe) seja difundida, tendo entendido muito bem a diferença entre o evento fotografado e o seu resultado. Orgulho resistente ou desejo resiliente de testemunhar, estas fotografias são exemplos deste "contrato civil" entre os participantes no evento fotográfico, nos antípodas da clássica dominação fotográfica: é também isso que a Palestina nos pode ensinar.
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