A apresentação na Documenta de Kassel de 2022 da obra «Justiça Popular», do colectivo indonésio Taring Padi, viria a suscitar grande celeuma, que culminaria na sua remoção, na demissão da diretora da Documenta, em ataques e difamações diversas dirigidas a artistas palestinos, tudo, claro está, sob alegações de «antissemitismo». Neste ensaio, o autor procura analisar as reações, os comentários, as acusações, as posições e censuras produzidas, evidenciando os pressupostos que lhe estão subjacentes.

Produzida como crítica ao regime ditatorial de Suharto, à denúncia do colonialismo ocidental e aos seus apoios internacionais, «Justiça Popular» é um vasto painel que integra largas centenas de figuras, de representações estereotipadas de agentes políticos e animais, como convém a uma obra de «agitprop». Entre estas pontuam alguns símbolos antissemitas – um judeu ortodoxo com a sigla «SS» no chapéu -, mas ainda “representantes” de serviços secretos australianos, britânicos e americanos, como cães, porcos, esqueletos e ratazanas em desfile militar junto a uma pilha de crânios, marines negros a masturbarem-se, entre muitas outras. Poderia ter constituído uma oportunidade para discutir os limites entre a crítica política legítima e a representação racista. Porém, a obra foi expeditamente classificada de antissemita e retirada escassos dias após a inauguração; foram atacados os seus autores, bem como os artistas palestinos, com base em difamações oriundas da extrema-direita, responsável pelos mais diversos crimes, inclusivamente terroristas. Isto numa Alemanha, onde baixos-relevos da Judensau, «porca judia», continuam a decorar catedrais.

E. Weizman reporta o percurso desses motivos levados para o Oriente no quadro do colonialismo ocidental, os quais adquirem significados específicos no contexto Indonésio, até retornarem ao seu ponto de partida, ressemantizados, mas que agora encontram um contexto que se alterou, caracterizado por acentuada intolerância a representações antissemitas e à crítica do Estado de Israel – não interessando se justas ou não -, pouco empenhado na crítica anti-colonial e anti-racista, acomodado ao recrudescimento de uma extrema-direita, abertamente racista e, em particular, islamofóbica.

Por um lado, os estereótipos visuais reproduzidos pelos artistas indonésios põem em evidência a incapacidade da Alemanha, contexto de partida e de chegada, para lidar com fenómenos complexos de migração e ressemantização das imagens. Por outro, esta incapacidade traduz-se no ataque irracional aos seus autores, expeditamente tratando tudo e todos de antissemitismo, censurando, cerceando a possibilidade de qualquer crítica ao colonialismo e racismo ocidentais, de que o antissemitismo constituirá a sua manifestação matricial, que, é certo, tem que ser combatido. Não obstante, os artistas indonésios e, sobretudo, os artistas palestinos tem fundadas razões de queixa em relação ao que percepcionam como colonialismo ocidental-sionista, ao verem cerceada a possibilidade de articularem o seu protesto e suprimido o alcance crítico contido das suas obras, mas também excluída a reflexão sobre as actuais formas de colonialismo e de racismo, para, ao invés, verem institucionalizado, nas palavras e nos actos, o racismo antipalestino.

Neste artigo, em que entrechocam concepções distintas de racismo e colonialismo, entre Ocidente e Oriente, constata-se «a incapacidade de pensar em conjunto as histórias do racismo, do colonialismo, do antissemitismo e do genocídio, e de estabelecer alianças nas lutas contra os mesmos».

Eyal Weizman

E. WEIZMAN (n.1970) é arquiteto pela Architectural Association (Londres, 1998), doutor pelo London Consortium / Birkbeck College (Londres, 2006) e, presentemente, professor de Spatial and Visual Cultures do Centre for Research Architecture, do Goldsmiths College, University of London, centro que fundou e dirige. Neste quadro, funda ainda o centro de investigação Forensic Architecture. O trabalho deste centro encontra-se documentado em Forensis (2014) e em Forensic Architecture. Violence at the Threshold of Detectability (2017), entre outras edições, exposições através do mundo e no website http://www.forensic-architecture.org. E. Weizman é também autor de A Civilian Occupation (2003), Hollow Land (2007), The Least of all Possible Evils (2011), Mengele’s Skull (2012), The Conflict Shoreline (2015) e Investigative Aesthetics (c/ Matthew Fuller; 2021). E. Weizman integra os comités editoriais de Third Text, Humanity, Cabinet e Political Concepts, o Conselho de Direção do Centre for Investigative Journalism (CIJ) e o Technology Advisory Board do Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia.

Em Portugal apresentou a exposição dos Forensic Architecture, Ground Truth. Destruição e Regresso em Al-Araqib e Assassinato em Umm Al-Hiran, no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, 23.9-31.10.2021, produzida no quadro do projeto (un)common ground, com o apoio da DGArtes e da CML.

A aldeia de Al-Araqib, no limiar do deserto do Neguev/Naqab, foi demolida e os seus habitantes expulsos pelas forças policiais de Israel pelo menos 191 vezes, significando que a Nakba palestina ainda está em curso. Mas após cada campanha de demolição a aldeia tem sido reconstruída, com a população local a exercer, continua e persistentemente, o seu direito de retorno ao território. Os trabalhos de demolição e florestação implementados pelo estado israelense alteram e eliminam os vestígios materiais dos habitantes para barrar o seu regresso; estes processos de supressão e ilegalização tornam as comunidades invisíveis, apagando-as dos mapas e das imagens de satélite.

Num esforço conjunto de fotografia aérea improvisada, os Forensic Architecture e as famílias Al-Turi, Al-Uqbi e Abu Freih, de Al-Araqib, utilizam papagaios-de-papel e balões equipados com simples câmaras fotográficas de modo a recolherem imagens aéreas do terreno. Este trabalho colaborativo permite registar indícios materiais da longevidade da presença nestas terras dos beduínos palestinos e da sua luta em curso contra a violência colonial israelense. Paralelamente, pesquisaram-se os arquivos das famílias afetadas, emergindo contratos, documentos de pagamento de impostos, cartas e todo o tipo de documentos atestando a preexistência da aldeia em relação à criação do Estado de Israel, pelo que, nos termos da lei, o seu direito a existir não deveria ser contestado.

Este ensaio é bem revelador do propósito dos Forensic Architecture, orientado para a pesquisa da verdade – que se encara como um bem público -, verdade que não é da ordem da retórica ou da memória, mas que se encontra do lado da matéria: da terra, do território, das construções, das ruínas, dos corpos, dos cadáveres, das formas das nuvens, dos chips dos smartphones, dos metadados de todo o tipo de comunicações. Os Forensic Architecture e Eyal Weizman têm de modo decisivo vindo a reconfigurar a forma e o sentido de uma arte política.

Eyal Weizman

E. WEIZMAN (n.1970) é arquiteto pela Architectural Association (Londres, 1998), doutor pelo London Consortium / Birkbeck College (Londres, 2006) e, presentemente, professor de Spatial and Visual Cultures do Centre for Research Architecture, do Goldsmiths College, University of London, centro que fundou e dirige. Neste quadro, funda ainda o centro de investigação Forensic Architecture. O trabalho deste centro encontra-se documentado em Forensis (2014) e em Forensic Architecture. Violence at the Threshold of Detectability (2017), entre outras edições, exposições através do mundo e no website http://www.forensic-architecture.org. E. Weizman é também autor de A Civilian Occupation (2003), Hollow Land (2007), The Least of all Possible Evils (2011), Mengele’s Skull (2012), The Conflict Shoreline (2015) e Investigative Aesthetics (c/ Matthew Fuller; 2021). E. Weizman integra os comités editoriais de Third Text, Humanity, Cabinet e Political Concepts, o Conselho de Direção do Centre for Investigative Journalism (CIJ) e o Technology Advisory Board do Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia.

Em Portugal apresentou a exposição dos Forensic Architecture, Ground Truth. Destruição e Regresso em Al-Araqib e Assassinato em Umm Al-Hiran, no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, 23.9-31.10.2021, produzida no quadro do projeto (un)common ground, com o apoio da DGArtes e da CML.